As jaqueiras proibidas
Há coisas que se agitam muito, mas nem sempre são as que duram. O brilho que dá movimento intenso aos olhos é o mesmo que confunde as nossas retinas, distrai nossos pensamentos e nos impede de enxergar o que é genuíno e bom.
O astro principal, por vezes, dura menos que o ator coadjuvante, cuja trama a história escreverá nas linhas do tempo.
Nasci torto e sigo assim, enviesado pela vida, com um olhar de admiração para as coisas ditas importantes, mas com outro olhar, ainda mais aguçado, para o que está ao lado: escondido, dissimulado e invisível aos olhos mortais.
Na pedra que encontro no meio do caminho, chego a imaginar que guarda, por dentro, um improvável diamante. Talvez por isso mesmo eu goste tanto das paisagens.
A estrada por onde passo pode ser a mesma por onde tantos outros já caminharam, mas o que vejo é só meu, pois enxergo as coisas por dentro, do meu jeito.
Gosto de contemplar os horizontes distantes. Sou um caçador do detalhe escondido, do raio de luz que ilumina o que merece ser visto. Tenho apreço pela grandeza do pequeno ato, pelo secundário aos olhos comuns, pelo que acontece nas margens dos grandes acontecimentos.
O médico Zbigniew Religa está em uma sala de cirurgia rudimentar na Polônia de 1987, monitorando um paciente após uma cirurgia de transplante de coração que durou 23 horas.
Na face do médico habita a expressão do cansaço.
O olhar do cirurgião, fixo no monitor, é captado pelo fotógrafo Jim Stanfield, e a foto foi eleita pela National Geographic como a melhor daquele ano.
O doutor Zbigniew Religa faleceu em 8 de março de 2009, vítima de câncer. No funeral, estiveram presentes o fotógrafo e o paciente, então com 88 anos, que permaneceu segurando a foto tirada naquele dia. O paciente, Tadeusz Zytkiewicz, viveu até 2017, completando 30 anos desde a operação que lhe deu um novo coração.
No canto, ao fundo da sala cirúrgica, entretanto, repousa uma pessoa exausta, que dorme no chão, encostada na parede. Parece ser uma jovem assistente… ou seria um rapaz? Talvez ainda esteja viva hoje para contar a história daquele dia. Quem sabe?
Quando visitei o Museu Nacional do Ar e do Espaço em Washington, o que mais me impressionou foi o Eagle, o nome dado ao Módulo Lunar da Apollo 11, a parte da nave que se separou do Módulo de Comando (Columbia) e desceu à superfície lunar, levando dois astronautas.
Ali estava, diante dos meus olhos, algo que mais parecia uma gaiola desajeitada, revestida com um material semelhante a papel alumínio dourado, revelando toda a sua fragilidade na concepção e na arquitetura.
Anos mais tarde, Edwin Aldrin (o segundo astronauta) confessou que teve muito medo de deixar cair sua caneta, pois isso poderia perfurar a frágil estrutura do módulo durante a descida ao solo lunar, comprometendo o sucesso do que seria “um pequeno passo para um homem, mas um salto gigante para a humanidade”, nas icônicas palavras do primeiro homem a pisar na Lua.
Fiquei ali pensando em como algo tão grandioso e um detalhe tão prosaico podem dividir a mesma cena. Como a fortaleza e a fragilidade podem caminhar juntas.
Passavam-se vinte anos do pouso na Lua, e o professor titular da disciplina de ginecologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) aposentava-se compulsoriamente.
O Professor Carlos Alberto Salvatore era um homem bom, excelente cirurgião, culto e afetuoso, amante de viagens e das artes. Assim como eu, fazia aniversário no dia 19 de abril (Dia do Índio), o que me permitia pegar carona no bolo de aniversário que as secretárias preparavam. “Ele era o cacique, eu o índio, e assim a aldeia seguiria em paz”, gracejou ele certa vez.
O Professor Salvatore era detalhista e conhecia como ninguém a ginecologia da época, mas era avesso a aventuras e incertezas. Isso o levou a recusar o quinhão da ginecologia no recém-inaugurado Hospital Universitário da USP. Alegava que trabalhar em um hospital distante, do outro lado do Rio Pinheiros, dificultaria a manutenção da qualidade do trabalho. Para ele, o tamanho da Clínica Ginecológica no Hospital das Clínicas já era amplamente suficiente.
Seu sucessor, o professor José Aristodemo Pinotti, tinha uma personalidade superlativa, marcada pela pressa e pelas grandes realizações . Era um homem de muitos empreendimentos: já tinha sido reitor da Universidade Estadual de Campinas, presidente das principais sociedades médicas do Brasil e do mundo, além de secretário de Saúde do estado de São Paulo.
No seu primeiro dia no exercício da chefia, reuniu todos os membros da Clínica Ginecológica, algo em torno de 40 pessoas, entre professores, médicos assistentes e residentes. Um outro contingente, formado por mais de 100 pessoas, também compareceu, lotando o anfiteatro e os corredores das imediações.
Em sua primeira fala, ele se dirigiu aos membros locais e disse:
“Não se assustem, haverá lugar para todos, e mais alguns que ainda virão. Hoje mesmo vamos dar início ao maior hospital de ginecologia da América Latina – o Instituto da Mulher.”
Na sequência, anunciou a formação do “Núcleo de Planejamento do Instituto da Mulher” e solicitou um voluntário que fosse médico ginecologista local, jovem e com disponibilidade para se dedicar ao projeto. Repetiu o chamado cinco vezes, e, como ninguém se habilitasse, ele olhou para mim e perguntou se eu aceitaria.
O núcleo, diretamente ligado ao secretário da Saúde, foi então formado, e o professor tinha pressa. Negociava o local para erguer o novo hospital. O campo de futebol da Atlética dos alunos de graduação foi logo descartado, pois não era prudente iniciar um conflito com os estudantes.
Um espaço entre o Hospital Emílio Ribas e a Secretaria da Saúde pareceu ser o local mais disponível, mas a área era exígua e possuía algumas árvores que não poderiam ser retiradas: jaqueiras, remanescentes de um tempo em que o espigão da Avenida Paulista era um reduto de chácaras distantes do centro de São Paulo.
Por trás das jaqueiras, em poucas semanas, foi fincada a pedra fundamental do futuro Instituto da Mulher. Passávamos dias e noites sobre calhamaços de papel, preparando relatórios sobre as demandas de equipamentos, recursos humanos e o impacto do novo hospital no sistema de saúde do estado de São Paulo. Um espigão de concreto com 23 pavimentos e quatro subsolos foi erguido em poucos meses.
Os desencontros da política, no entanto, deixaram aquele esqueleto de concreto inacabado por vinte anos, enfeiando a paisagem no ponto mais alto da cidade de São Paulo. Só décadas depois, um novo governador decidiu transformá-lo no Instituto do Câncer do Estado de São Paulo.
O tempo da política e dos humanos tem seus solavancos; o tempo da natureza, não. Ele segue seu curso, não se atrasa nem se adianta. As jaqueiras, impávidas, permaneceram ali, respeitando o ciclo das estações, produzindo seus frutos volumosos que caíam no chão como que a zombar dos nossos tropeços e desencontros.
As ramagens frondosas das jaqueiras tornaram-se abrigo, nos dias de sol escaldante, para aqueles que ali chegam em busca de tratamento para o câncer.
As pessoas que tratamos de câncer são generosas. Aceitam resignadas nossas intervenções, mesmo quando lhes cortamos a pele, amputamos órgãos ou as fazemos perder os cabelos. A luta pela vida, por vezes, traz danos colaterais que são aceitos.
Os frutos das jaqueiras são doces por dentro, mas duros por fora. São volumosos e, quando despencam dos galhos, podem ferir de morte uma cabeça desavisada que repousa em sua sombra.
Por esse motivo, as jaqueiras foram proibidas de frutificar.
Assim que os pequenos frutos brotam nos troncos escuros, um jardineiro cuidadoso os tolhe, podando os pequenos rebentos.
As jaqueiras nunca reclamam. Aceitam, silenciosas, essas amputações.





Uma das frases que mais me assusta - e que é das mais verdadeiras é esta que está no seu texto: "O tempo da política e dos humanos tem seus solavancos; o tempo da natureza, não." Vivemos de querer apressar as coisas, de controlar o desenrolar dos fatos, mas a verdade é que os frutos só nascem quando é a hora - o das jaqueiras e os frutos do nosso trabalho.
Amei o texto! Serviu de inspiração para a minha news desta semana - e para me lembrar do tempo das coisas.