A criança ardia em febre, e a mulher já havia tentado o chá das folhas de sabugueiro, colhidas no quintal, mas a febre não cedia. Os emplastos com mandioca ralada, colocados na fronte da criança, retornavam cada vez mais quentes.
A mulher sabia que os demônios não fazem barulho durante o dia, nem mesmo deixam rastros, mas andam sempre à espreita, e retornam amiúde durante a noite, para consumar as suas maldades. Era preciso tomar uma atitude, antes que fosse tarde.
Enrolou o rebento em panos e se pôs em direção ao vilarejo, com o propósito de ter um apontamento com a velha Adriana, a boticária. Na falta de um médico estabelecido naquela freguesia, era ela, a boticária, a última salvação de todos os enfermos.
A caminhada de meia légua até o povoado se resolvia por uma estrada de terra, que contornava um capão de mata fechada. Depois passava por uma ponte de madeira sobre um riacho de águas profundas, e seguia fazendo curvas até que se avistava a torre da igreja do povoado, e o pequeno comércio no entorno. O sol já pendia para os lados do poente quando a mulher chegou no canto da praça, e adentrou à botica.
Para além de um balcão de madeira envelhecido, erguiam-se prateleiras com frascos de vidro marrom, repletos de líquidos, e outros cheios de sais de várias espécies e cores.
A boticária olhava com os óculos costumeiros, assentados quase sobre a ponta do nariz. Na maior parte do tempo, olhava por sobre as lentes, e não através delas, e ouvia atenta o relato da mãe.
Com um gesto de mão, a boticária indicou que a mulher entrasse na pequena saleta, com portas de treliça, no fundo da botica. Deitou a criança sobre a mesa com acolchoado verde, introduziu o cabo de metal de uma colher na boca infantil e, com o auxílio de uma lamparina, examinou as profundezas daquela garganta. A criança se contorcia em acessos de náusea, enquanto a mãe segurava, com força e prontidão, a cabeça pequena.
Depois, a boticária apalpou o abdome pequeno com a ponta dos dedos, como se fizesse uma procissão em círculos, parando em cada estação para sentir ou observar. Um pequeno funil de metal prateado foi colocado na orelha, e com uma haste metálica envolvida em algodão, colheu as secreções do minúsculo orifício.
A boticária falava pouco, e fazia tudo muito ligeiro. Apontou para o canto da saleta, onde um recipiente de aço, chamuscado pelo fogo e pelo tempo, estava assentado sobre um fogareiro e borbulhava águas ferventes. A boticária mergulhou naquelas águas as seringas de vidro e as agulhas prateadas.
Ao mesmo tempo, se propôs a desmanchar um pó branco que estava dentro de um pequeno frasco, injetando um líquido e sacudindo o conjunto até obter uma solução leitosa. Era um caso para injeção de penicilina, disse à mãe, sem a qual a febre não cederia.
Quando tudo terminou, o sol estava a um palmo da linha do horizonte, e os últimos raios já não furavam as copas das árvores, mas rastejavam próximos das raízes. A mulher, com a criança enrolada nos panos, principiou a caminhada de volta.
A estrada era longa e cheia de curvas, mas os homens, ela sabia, costumavam cortar o caminho por uma passagem dentro da mata fechada, e em pouco tempo rompiam pelo outro lado, no descampado, onde as casas de paredes brancas podiam ser avistadas.
Sem nunca ter feito antes, a mulher decidiu empreender o novo caminho, pois tinha pressa em chegar à casa e colocar a criança na cama. Já havia caminhado um tempo considerável, e o descampado do outro lado do capão de mata não se mostrava.
O lusco-fusco se fundia aos tons verdes da mata, e os coloridos das árvores foram desaparecendo, e no lugar resultava uma ausência monótona de cor. A algazarra das maritacas se acalmava. Uma ave noturna fez uma revoada, e ao longe, o pio da coruja informava que a noite chegaria em breve.
Perdida no meio da mata, a mulher sentiu medo. Sentiu todos os medos do mundo juntos com os seus próprios medos, e também os medos por aquela criança, que ainda não tinha idade para ter medos, e que agora dormia profundamente, enrolada em panos sobre os seios da mãe. Ela lutava contra o próprio medo, solitária, perdida buscando o caminho de volta à casa.
Passada a febre, a criança dormia profundamente, alheia a todos os temores. O coração batia forte, e por vezes descompassados no peito materno. A criança dormia, porque ali era o lugar que toda criança gostaria de estar, no colo da mãe.
Sem encontrar a saída, a mulher decidiu retornar ao ponto em que entrou na mata e depois se perdeu. Foram horas de labuta e apreensão, observando pegadas, rastros e galhos quebrados, até que a estrada tortuosa de terra surgiu finalmente à sua frente.
Tarde da noite, a mulher chegou em casa, colocou a criança na cama, e sem dizer palavras, ajoelhou-se defronte à imagem da santa que tinha no quarto, e rezou em silêncio.
De todas as coisas que aquela mulher perdeu, que a vida levou, ou lhe tirou, o que mais a fazia sentir falta era a perda das pernas. Dizia que, se pudesse voltar a andar, voltaria a ser uma pessoa feliz. O acidente cerebral tornou-a dependente de uma cadeira de rodas, que ela odiava.
As palavras, antes fluidas, agora custavam a se encaixar na ordem desejada das falas. Era como se houvesse uma separação entre a intenção e os gestos. De que valia ter a mente lúcida, se não podia transformar os pensamentos em ação? A mulher envelheceu e os dias, todos iguais, custavam passar.
Na maior parte do tempo, restava prostrada em uma poltrona defronte a um aparelho de televisão, com uma cuidadora entediada de companhia. A mulher, de corpo pesado se tornou também indócil quando estava infeliz, isto é, na maior parte do tempo.
Colocá-la dentro de um automóvel para qualquer deslocamento exigia uma logística trabalhosa, com o desmontar e remontar da cadeira de rodas, e a repetição das mesmas operações em cada parada. Mover seu corpo pesado era tarefa complexa e dolorosa. As cuidadoras, por vezes, se aborreciam ou abandonavam o trabalho, com desculpas desencontradas.
Quando a mulher recebia visitas, o ritual era costumeiro: primeiro vinham as lamentações, o desgosto das pernas perdidas, e das palavras que teimavam em não se encaixar na ordem desejada.
Tinha nos gestos, a raiva que vem de dentro, por não poder ter trazido o passado na algibeira (como diria Pessoa), mas se aquietava quando alguém lhe ajudava com as palavras, de forma que ela pudesse contar uma história inteira, emendando os retalhos do discurso que ela ainda conseguia juntar.
Naquela manhã ainda muito cedo, quando o automóvel parou defronte à sua porta, ela já estava pronta, e esperava ansiosa pelo passeio prometido. Ela não sabia ao certo se a velha amiga ainda estava viva, mas se tivesse, com certeza ainda habitaria a mesma casa próxima do riacho, com o pé de pequi junto à porteira, espalhando os seus frutos espinhentos pelo chão. A amiga era uma personagem constante em suas histórias.
O movimento lento do carro, a contemplação da paisagem, a vida passando pela janela, traziam vontades de falar. O motorista do automóvel percebeu, que aquela mulher idosa, e trôpega com as palavras, estava feliz. Ele esperava, como quem espera o ajuntamento dos cacos de uma porcelana valiosa quebrada, mas que ao ser reconstituída revelaria toda a sua antiga beleza.
A mulher contemplava as paisagens bucólicas deslizando pela janela. O olhar distante no horizonte, a casa da amiga no destino ainda incerto, faziam brotar as palavras nos lábios trêmulos.
O automóvel avançava pela estrada tortuosa de terra, com animais deitados no meio do caminho, o riacho impávido, de águas barulhentas e profundas, a ponte de madeira, e o capão de mata verde, no pé da colina.
A mulher pediu que o motorista parasse o carro, e então emocionada, falou do medo que sentiu, naquele entardecer, quando voltava do vilarejo com o filho adoentado no colo, enrolado em panos, e se perdeu naquela mata que ainda está lá, ao lado da mesma estrada tortuosa de terra, com animais deitados no meio do caminho, e do mesmo riacho impávido, de águas barulhentas e profundas, sob a mesma ponte de madeira.
O menino febril que adormeceu no colo da mãe, agora é o homem que dirige o automóvel, e tem o mundo inteiro para se perder. O vaso de porcelana quebrado é o tempo, cujos cacos podem ser recolhidos pacientemente, e recolocados nos seus lugares, para recompor o elo da corrente, que conecta a aurora daquele menino, com o crepúsculo daquela mulher.
“Que texto maravilhoso! Uma reflexão sensível e profunda, que toca a alma e inspira o coração. Parabéns Dr Jesus, pela escrita tão cuidadosa e significativa — suas palavras convidam à contemplação e ao crescimento.
Obrigada por mais esse momento reflexivo e tão sensível!