Era um convite para a palestra de encerramento de curso, e o tema sugerido: “O propósito”.
Questionei a anfitriã se havia algum engano. Ela informou que não, e que a audiência seria composta por mulheres, de profissões diversas que desejavam reorientar as suas carreiras.
“Sou um médico, e não um filósofo” ponderei, mas mesmo assim ela manteve o convite, e o evento seria dois meses adiante. Pedia também que eu contasse uma história, com personagens inclusive. Haveria tempo para pensar no assunto.
Um jovem escritor abordou certa vez Ernest Hemingway e pediu que lesse o seu manuscrito, o que ele recusou dizendo que certamente não iria gostar da história.
“Como pode não gostar se nem sequer abriu para ler a primeira página?”
Hemingway completou, “se a história for ruim eu não vou gostar, e se for boa também não, porque não foi escrita por mim”.
Inconformado o jovem pediu então, que Hemingway lhe dissesse o que é uma boa história, e ele respondeu: “qualquer história é boa se for verdadeira”.
Quando escreveu o clássico “Grande Sertão: Veredas”, Guimarães Rosa morava em Paris. Indagado sobre como conseguiu escrever com tantos detalhes os seus personagens Riobaldo, Diadorim, Joca Ramiro, e o sertão das Gerais, enquanto olhava a cidade-luz pelas janelas, Guimarães respondeu: “o grande Sertão está dentro de mim, e eu o levo para onde eu for”.
Uma história não pertence a ninguém. Ela existe, e será sempre a continuação de outras tantas histórias, e de tantos outros, que se sucederão. “Amor à primeira vista” é um poema da laureada poetisa polonesa Wislawa Szymborska. Na última estrofe ela escreve: “Porque afinal cada começo, é só continuação, e o livro dos eventos está sempre aberto no meio”.
Pronto. Eu tinha assim os elementos para a minha palestra: “O propósito, histórias verdadeiras e a poesia”. Fosse uma inspiração ou uma advertência, não faria qualquer diferença.
Eu era um jovem médico-residente de primeiro ano, que completava o orçamento com plantões em hospitais de periferia, em condições precárias de trabalho, e pagamentos aviltados. Um professor que observava o meu trabalho me convidou para ser o segundo assistente da sua equipe. A primeira assistente por vezes se aborrecia em ser chamada em horários incômodos. Fiquei exultante com a grande oportunidade, o professor era de grande prestígio, e o seu consultório tinha vistas para o parque do Ibirapuera.
Algumas semanas mais tarde eu fui convocado para auxiliar uma cirurgia tarde da noite. Entrei no fusquinha branco, que dormia ao relento, do outro lado da rua do predinho em que eu morava, e fui. A cirurgia ganhou a madrugada toda e eu consegui desempenhar o meu papel com presteza e competência. Ao final, o professor me orientou a fazer o recibo onde constava os honorários que eu faria justo pelo trabalho. Era um valor que eu jamais havia ganho, que faria toda a diferença no orçamento do mês com contas de aluguel e de supermercado.
Terminada a cirurgia, o professor sugeriu que fôssemos à cafeteria no andar inferior. O marido da paciente operada, um empresário português, parecia feliz e acompanhou-nos ao café.
Sem saber o que falar eu comentei que tinha tido dificuldades em fazer funcionar fusquinha na noite fria. O homem soltou uma gargalhada e começou a fazer chacotas com a minha situação. De início parecia apenas uma brincadeira, mas o homem insistia, enquanto eu ficava cada vez mais constrangido.
Terminei o café e pedi licença para me ausentar. O professor acompanhou-me até a porta e pediu que eu rasgasse aquele papel com o valor dos meus honorários e fizesse outro, com um valor trinta por cento superior. Perguntei o porquê, e ele me respondeu: “às vezes devemos inserir uma taxa de insalubridade quando prestamos os nossos serviços para um certo tipo de gente”.
Retornei para casa com um sentimento dúbio de felicidade e de tristeza. Minhas contas seriam pagas agora com facilidade, e mais ainda com a taxa de insalubridade muito generosa. Mas as falas do empresário português insistiam em retornar à minha mente, causando-me um incômodo estranho.
Alguns anos mais tarde, eu já era um médico experiente, e fazia parte de uma das equipes de emergência do Hospital das Clínicas. Hoje tudo é diferente, mas naqueles tempos era como praticar medicina de guerra. Mais de uma centena de macas com pacientes graves enchiam os corredores. Chegava gente todos os dias, de toda parte da Grande São Paulo, trazidas por ambulâncias de resgate, bombeiros ou viaturas de polícia.
Uma ambulância da cidade de Cotia trouxe Joelia, uma moça de dezoito anos que havia feito cirurgia para um tumor pélvico, sem sucesso. O abdome da moça se abriu e os intestinos estavam à mostra em meio a pedaços de tumor infectado, cheirando à carne podre.
Infecção, eventração, e um tumor inoperável tornavam o prognóstico sombrio, mas mesmo assim decidi leva-la à cirurgia para dar ao menos um pouco de dignidade àquela moça que parecia morrer a cada instante, mas resistiu.
Tinha um tumor de origem na célula germinativa, um tumor raro, e nas semanas que se seguiram, com a cirurgia, os antibióticos e a quimioterapia a moça superou a doença. Esta seria mais uma história banal até aqui, pois aconteciam coisas parecidas todos os dias. Mas o principal estava por acontecer.
Joelia se recuperou completamente e vinha com regularidade ao hospital para fazer exames de acompanhamento.
Na avenida defronte ao Hospital das Clínicas, todas as manhãs os vendedores ambulantes espalhavam as suas mercadorias pela calçada, o que era proibido. Os fiscais da prefeitura passavam acompanhados de policiais que prendiam alguns ambulantes, e recolhiam as mercadorias de outros. Quando os fiscais apareciam, um olheiro na ponta da rua gritava: “Olha o rapa!!”, e este era o sinal para que todos os vendedores ambulantes colocassem as mercadorias em grandes sacos, e saíssem correndo pela avenida.
De tanto passar por ali, Joelia aderiu aos ambulantes, e sem ter dias definidos, eu a via espalhando as suas mercadorias pela calçada, ou então correndo da polícia.
Quando me via, entretanto, caminhando pela calçada, Joelia esquecia das mercadorias e da polícia, e corria para me dar um abraço forte e efusivo, com os seus braços contornando o meu tórax.
Eu nunca seria um médico de posses invejáveis atendendo Joelias, e ainda corria o risco de ser também levado pela polícia se fosse visto abraçado com ela, no meio da calçada.
Mas os encontros com a Joelia naquelas manhãs, e a sua alegria contagiante, me davam a certeza de que pelo menos aquele dia seria feliz. Eu voltaria para casa sem solução para os meus boletos, sem a taxa de insalubridade, mas também sem a vontade de esquecer alguém de lembranças incômodas.
Por muito tempo Joelia e o empresário português se digladiaram dentro de mim, sempre que eu pensava no propósito da minha profissão, e da minha vida. Para quem eu dedicaria os meus esforços, o meu trabalho, e a arte do meu ofício?
O português me acenava com os pequenos luxos e os grandes prazeres, e tudo o que eu me julgava merecedor de consumir. Mas também me acenava com noites de insônia, pelos enxovalhos engolidos calado, em busca do vil metal, mesmo com as possíveis taxas de insalubridade.
Joelia era a inconsequência festiva, e manter-se viva ainda que correndo do rapa já era a sua grande vitória.
Como é difícil fazer escolhas nos anos verdes da vida!
Como é difícil mover-se contra a corrente quando se tem apenas duas dimensões a considerar: matar ou morrer, vencer ou ser vencido, prosperar ou sucumbir.
Sim, mas existem outras dimensões, e isto só o tempo pode mostrar.
Não estou falando de abstrações mágicas, ou promessas de recompensas em outras vidas. Elegi como propósito que a minha vida haveria de ser lúdica aqui mesmo e agora, e em todo ou qualquer momento.
A palavra “ludus” vem do latim e significa jogo, ou mais apropriadamente brinquedo. A criança é o ser mais lúdico que existe, e o seu prazer é máximo quando está brincando com o brinquedo predileto, seja ele um cabo de vassoura transformado em cavalo, ou um brinquedo eletrônico caríssimo, invariavelmente introduzido por um adulto que não brincou na infância.
O lúdico é uma semente que cresce com o tempo, e que dá frutos quando cultivada com esmero. O prazer de viver as pequenas grandes coisas pode até se transformar em prazeres materiais, se este não for o objetivo final. Joelia era lúdica correndo do rapa, e eu também haveria de ser na minha profissão.
O lúdico está nos detalhes e só se mostra para quem tem o propósito de encontrá-lo, como uma pérola escondida dentro da ostra. Esteja você pilotando uma nave, correndo do rapa, ou abrindo um abdome para retirar um tumor, não importa, o lúdico está no caminho de quem exerce o seu ofício com prazer. A vida lúdica tem a dimensão da poesia.
Ser lúdico não é ser irresponsável. É, pelo contrário, ter respeito pela vida que é única e não retorna. Não é apenas correr em busca da medalha ou da glória efêmera, mas caminhar numa longa jornada atento a todos os sentidos e sensações do trajeto.
Seria ingênuo pensar que haverá sol e brisa fresca sempre. Haverá entretanto, momentos de luta feroz. É mister saber empunhar a espada ou o martelo, e usá-los com força sempre que necessário, mas sem esquecer o propósito, e sem perder o afeto.
“E se a sentença se anuncia bruta, mais que depressa a mão cega executa. Pois que senão, o coração perdoa.” (Ruy Guerra/Chico Buarque).
Quem segue de outra forma se arrisca a chegar cansado a lugar nenhum, e carregado de coisas de que não carecia, e com falta de tantas outras que o tempo vai lhe cobrar mais cedo ou tarde. A vida está nas bordas da estrada e não no ponto de chegada. A estrada da vida é cheia de encruzilhadas e os mapas que nos são oferecidos têm credibilidade duvidosa. “Viver é perigoso”, escreveu Guimarães Rosa.
A vida não tem rascunho, e só se aprende a viver, vivendo.
Os anos se passaram e eu pude perceber que entre a Joelia e o empresário português havia muito mais gente do que eu podia imaginar. Gente interessante, com seus pesos ou suas levezas, com suas virtudes e suas mazelas, seus sofrimentos e seus prazeres, gente que me provocava, mas que também me acolhia. Conhecer a dimensão da natureza humana seria a minha estrada, e oferecer a todos o meu ofício seria o meu propósito.
Os frutos haveriam de vir, cedo ou tarde. E mesmo que não viessem ou que tarde chegassem, o importante era continuar caminhando. Ludicamente!
Nunca me arrependi destas escolhas, e nunca tive insônias por isso.
O poeta Vinicius de Moraes quando abandonou a carreira diplomática recebeu uma carta de reprimenda e advertência de um magnata americano, conhecido seu. O poeta respondeu com uma poesia que reproduzo aqui alguns trechos.
“Olhe aqui, Mr. Buster: está muito certo
Que o Sr. tenha um apartamento em Park Avenue e uma casa em Beverly Hills.
Está muito certo que em seu apartamento de Park Avenue
O Sr. tenha um caco de friso do Partenon, e no quintal de sua casa em Hollywood
Um poço de petróleo trabalhando de dia para lhe dar dinheiro e de noite para lhe dar insônia...
Está tudo muito certo, Mr. Buster - o Sr. ainda acabará governador do seu estado
E sem dúvida presidente de muitas companhias de petróleo, aço e consciências enlatadas.
Mas me diga uma coisa, Mr. Buster
Me diga sinceramente uma coisa, Mr. Buster:
O Sr. sabe lá o que é um choro de Pixinguinha?
O Sr. sabe lá o que é ter uma jabuticabeira no quintal?
O Sr. sabe lá o que é torcer pelo Botafogo?”
Quando li este poema pela primeira vez me dei conta que eu tinha uma jabuticabeira no meu quintal.
Professor, excelente texto. Inspirador!
Adorei a leveza e a mensagem! Precisamos valorizar as jabuticabeiras! 🥰🙏🏼😍